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sexta-feira, 12 de agosto de 2011

LER DEVIA SER PROÍBIDO
Guiomar de Grammont
       A pensar a fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para  realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir is exemplos de Don-Quixote e Madamme Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto À pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesões.
       Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram, sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-lo com cabriolas imaginação.
       Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas pra que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
       Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que é devido.
       Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebida.
       É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.
       Não, não dêem mais livros as escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem história, podem estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
       Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem as suas demandas, a fincar sua posição no mundo,a fazer dos discursos s instrumentos de conquista da sua liberdade.
       O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédios, projetos, manuais, etc. observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a maquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há correntes, prisões tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura?
       É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns.  Jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silencio da alcova... Ler deve ser coisa rara, não pra qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder e o poder e para poucos. Para obedecer, não é preciso enxergar, o silencio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
       Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o intimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras historias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sem, a leitura dever ser proibida.
       Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

In PRADO, J, e CONDINI, P(Orgs.). A Formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999.pp.71-73.

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